quinta-feira, 27 de maio de 2010

Epístola a Marília

Pavorosa ilusão de Eternidade,

Terror dos vivos, cárcere dos mortos;

D'almas vãs sonho vão, chamado inferno;

Sistema de política opressora,

Freio que a mão dos déspotas, dos bonzos

Forjou para a boçal credulidade;

Dogma funesto, que o remorso arraigas

Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas:

Dogma funesto, detestável crença,

Que envenena delícias inocentes!

Tais como aquelas que o céu fingem:

Fúrias, Cerastes, Dragos, Centimanos,

Perpétua escuridão, perpétua chama,

Incompatíveis produções do engano,

Do sempiterno horror horrível quadro,

(Só terrível aos olhos da ignorância)

Não, não me assombram tuas negras cores,

Dos homens o pincel, e a mão conheço:

Trema de ouvir sacrílego ameaço

Quem d'um Deus quando quer faz um tirano:

Trema a superstição; lágrimas, preces,

Votos, suspiros arquejando espalhe,

Coza as faces co'a terra, os peitos fira,

Vergonhosa piedade, inútil vênia

Espere às plantas de impostor sagrado,

Que ora os infernos abre, ora os ferrolha:

Que às leis, que às propensões da natureza

Eternas, imutáveis, necessária,

Chama espantosos, voluntários crimes;

Que as vidas paixões que em si fomenta,

Aborrece no mais, nos mais fulmina:

Que molesto jejum roaz cilico

Com despótica voz à carne arbitra,

E, nos ares lançando a fútil bênção,

Vai do grã tribunal desenfadar-se

Em sórdido prazer, venais delícias,

Escândalo de Amor, que dá, não vende.



II



Oh Deus, não opressor, não vingativo,

Não vibrando com a destra o raio ardente

Contra o suave instinto que nos deste;

Não carrancudo, ríspido, arrojando

Sobre os mortais a rígida sentença,

A punição cruel, que execede o crime,

Até na opinião do cego escravo,

Que te adora, te incensa, e crê que és duro!

Monstros de vis paixões, danados peitos

Regidos pelo sôfrego interesse

(Alto, impassivo númen!) te atribuem

A cólera, a vingança, os vícios todos

Negros enxames, que lhes fervem n'alma!

Quer sanhudo, ministro dos altares

Dourar o horror das bárbaras cruezas,

Cobrir com véu compacto, e venerando

A atroz satisfação de antigos ódios,

Que a mira põem no estrago da inocência,

(. . .)

Ei-lo, cheio de um Deus, tão mau como ele,

Ei-lo citando os hórridos exemplos

Em que aterrada observe a fantasia

Um Deus algoz, a vítima o seu povo:

( . . .)

Ah! Bárbaro impostor, monstro sedento

De crimes, de ais, de lágrimas, de estragos,

Serena o frenesi, reprime as garras,

E a torrente de horrores, que derramas,

Para fundar o império dos tiranos,

Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo

De oprimir seus iguais com férreo jugo.

Não profanes, sacrílego, não manches

Da eterna divindade o nome augusto!

Esse, de quem te ostentas tão válido,

É Deus de teu furor, Deus do teu gênio,

Deus criado por ti, Deus necessário

Aos tiranos da terra, aos que te imitam,

E àqueles, que não crêem que Deus existe.

(. . .)



Fonte: www.revista.agulha.nom.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Estudando...